P.
3 min readNov 7, 2021

As mortes não podem ser sentidas

Há dois dias Marília Mendonça faleceu, aparentemente por irresponsabilidade na sinalização de fios de alta tensão. O país parece estarrecido.

No mesmo dia faleceu o pai de um colega e eu que dei muitos pêsames esse ano, me esqueci de dirigir meus sentimentos, porque saindo do trabalho recebi uma demanda urgente que me fez cumprir 2h45 além do horário de saída. Realizando a tarefa, recebo a notícia da morte e eu que tanto gostava da artista, que no bar há 2 semanas combinava retorno ao show dela, não consigo sentir, porque corria para entregar uma planilha. Tinha fumado um cigarro entre suspiros profundos de cansaço e li que estava tudo bem, depois a notícia mudou e eu não conseguia sentir. O vazio instalado.

Uma expressão que me aborrece é “em tempos de covid". Por ter cumprido um rígido isolamento e lidado com todas as consequências do mesmo, a apatia se instalou diante do descaso com o outro, desenvolvi certa aversão pela artificialidade das redes sociais e hoje tenho dificuldade em manter vínculos com quem vi agindo de maneira irresponsável. Quase tudo soa falso e produzido, em desatinos vejo algum traço de busca por verdade e profundidade, tento tragar essa loucura como o fumante invejoso que passa respirando fundo por quem solta fumaça.

Vazio e cansaço são sensações frequentes no cenário econômico catastrófico em que nos encontramos, cuja nuvem densa das mortes ignoradas para manter a sanidade paira no ar. Nos estapeamos em busca de renda para o básico, encaramos com sorriso no rosto e ódio no coração quem é bem sucedido nesse aspecto. Os músculos das costas enrijecem e tremem com estresse, aguardamos ansiosos a hora do sono para desligar e com sorte o cérebro em sua organização passar os dias em que sentíamos o coração acelerado por um acontecimento bom prestes a ocorrer numa tarde de folga ou após um enfadonho dia de trabalho, uma inconsequência sem medo, o alívio depois de se safar, uma risada molhada de praia secando na areia, um abraço longo de repouso, atos corajosos, virar a noite aprontando na rua, acordar ainda de porre, a sensação de flutuar na cama, o cansaço bom…

Tenho dificuldade em ler conteúdo reflexivo de fato hoje. Documentos pressionam para entregar minha atenção contra à vontade e resta pouco de mim ao fim do dia, não é difícil o saudosismo se instalar. Caminhamos para o esfarelamento, pipocam análises imperdíveis e entretenimento o tempo todo. É uma blitzkrieg mental a cada 10 min.

Byung-Chul Han diz que desempenho contemplativo, por aprofundamento na reflexão do homem, cedeu lugar à hiperatenção do homem multitarefa, que é uma regressão que nos aproxima da vida selvagem. O animal laborans é vítima e agressor de si mesmo, explora a si e sente que fracassou na busca de poder, pois os limites de produção são impostos apenas por ele. Surge na continuidade da sociedade disciplinar estudada por Foucault, é refém da positividade ("Yes, we can!") e pratica a livre coerção por desempenho. Não pode ser o deprimido para não haver queda na produtividade, se torna cansado e adoece psiquicamente.

Uma monografia sobre concepções epistemológicas de professores de matemática, uma palestra a doutorandos, eleição em conselho, novo emprego… nada parece suficiente, porque não é espontâneo, são meras tarefas acumuladas. Nenhuma diversão, sorriso explodindo, loucura. Uma sede insaciável.

Não sentimos de fato, porque não refletimos no ócio, não há tempo, todo fenômeno é dado como imediato e indigno de atenção. A epoché não tem lugar, caminhamos sem saber a razão e finalidade. Não há juízo a ser suspenso, porque só há consumo, nenhuma criatividade e produção original. É Richard dizendo em The Hours “Oh, Mrs. Dalloway! Always giving parties to cover the silence.”

Poderia desejar contemplar como Sócrates: com vinhos, uvas e um divã. Algo me diz que livre dos solavancos do trem da produtividade, cairia ainda melhor uma cachacinha com tropicália, choro seguido de riso e nenhum prazo em mente.

P.

Lesbofeminista, liberal-socialista, autista, licenciada em Filosofia e Matemática.